Ricardo Carvalho
Desembargador do TJ-SP
O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e
amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o ‘day after’ será mais
difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem
a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem
a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do
emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a
origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma
febre, mal estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia,
bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é
transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se
espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa
parte da população, surpreende.
Qual a relação da Covid-19 com o meio ambiente? Não
tenho em mãos estudos científicos, trabalhos acadêmicos ou o necessário
distanciamento, no tempo e no espaço, para um artigo de maior profundidade; mas
não custa tentar entender algo do que aconteceu e do que pode acontecer a
partir das entrevistas, das publicações e da incessante atividade de estudiosos
e jornalistas conscientes. Este artigo não tem pretensão científica; é apenas
uma colocação inicial do tema, uma reflexão nestes tempos pandêmicos.
A Covid-19 é causada por um vírus: os únicos
organismos acelulares da Terra, seres muito simples e pequenos formados por uma
cápsula proteica envolvendo o material genético. O nome vem do latim ‘virus’
(fluído venenoso ou toxina) e designa os vírus biológicos e, metaforicamente,
qualquer coisa que se reproduza de forma parasitária. Não são células: o vírus
é uma partícula sem metabolismo próprio que, para executar seu ciclo de vida,
busca um ambiente que tenha o que lhe falta. Esse ambiente é o interior de uma
célula que efetuará a síntese da proteína do vírus e, simultaneamente, fará a
multiplicação do material genético viral; por isso são parasitas obrigatórios
do interior celular, pois se reproduzem pela invasão e controle da máquina de
reprodução celular. O vírus muitas vezes adere à parede da célula e ‘injeta’ o
seu material genético como uma seringa, ou então entra por englobamento em que
a célula ‘engole’ o vírus e o introduz no seu interior. A reprodução ocorre de
duas maneiras: o vírus invade e assume o controle da célula, produz novos
vírus, a célula se rompe e libera os vírus produzidos, que invadirão outras
células (ciclo lítico); ou então, após a invasão o DNA viral incorpora-se ao
DNA da célula infectada que continua suas operações normais; o material
genético do vírus é duplicado nas células-filhas a cada mitose, causando
doenças que tendem a ser incuráveis, como a AIDS (ciclo lisogênico)1.
Os coronavírus são um grupo de vírus conhecido dos
humanos desde a década de 1960, causa comum de infecções respiratórias brandas
a graves de curta duração; nesse grupo estão os vírus SARSr-CoV, que causa a
síndrome respiratória aguda grave (SARS), que apareceu em 2002 na China e se
espalhou rapidamente para mais de doze países na América do Norte, América do
Sul, Europa e Ásia, infectando mais de 8.000 pessoas com aproximadamente
oitocentas mortes, e SARS-Cov-2, que causa a Covid-19, a atual pandemia2 que até 26-3-2020 atingiu pelo
menos 510.000 pessoas em mais de 200 países e territórios, com grande surto na
China continental, Itália, Estados Unidos, Espanha e Alemanha, com aproximadamente
15.000 mortes3. Transmite-se de pessoa a pessoa
com enorme rapidez, mas não é um vírus resistente: cede à água e sabão, a
medidas comuns de higiene e não sobrevive muito tempo se não for absorvido por
outra pessoa.
A hipótese mais provável é ter origem em morcegos
(que não adoecem dele, por causa de seu especial metabolismo), daí passou para
o pangolim (uma espécie africana, que lembra o nosso tatu, procurado na China
pelo sabor da carne e por ditas propriedades medicinais) (fala-se nele, pois os
estudos indicam que a Covid-19 é 99% igual ao vírus do pangolim), e dele
para os humanos. Essa tripla passagem é rara, pois o curto espaço de vida do
vírus exige que os três animais: o morcego, o pangolim e o humano, estejam
junto no mesmo tempo e lugar. Aí entra o mercado de Wuhan, onde animais vivos,
domésticos e selvagens de todo o mundo, ficam empilhados em engradados, um em
cima do outro, de modo que os debaixo recebem os resíduos dos que estão em cima
(fezes, urina, sangue, pus, seja o que for) e assim se contaminam, se algum
acima carregar o vírus; e dali são comprados e consumidos por humanos4. O período em que o humano é
assintomático e a facilidade da transmissão explica a rápida expansão da
epidemia.
Morcegos? Zoólogos e infectologistas indicam que
mudanças no comportamento humano – destruição de habitats naturais somado ao
rápido movimento de pessoas no planeta – facilitou a transmissão de doenças
antes circunscritas à natureza distante. Morcegos são os únicos mamíferos que voam,
por isso as colonias se movimentam por uma grande área. Os vírus que neles se
desenvolvem aprendem a suportar a elevação da temperatura corporal durante o
voo, e por consequência acabam resistindo à febre humana (um meio de defesa),
quando nos atacam. Segundo Andrew Cunningham, Professor de Epidemiologia
Selvagem na Sociedade Zoológica de Londres, a transferência inter-espécies
decorre da atividade humana: quando o morcego está assustado ou estressado por
ser caçado, ou porque seu habitat está sendo destruído pelo desflorestamento,
seu sistema imunológico enfraquece e tem dificuldade de controlar tais
patógenos; a infecção aumenta e é excretada ou expelida. O ‘stress’ porque
passam os animais selvagens nos mercados de animais vivos como em Wuhan leva à excreção
mais acentuada dos animais contaminados, que atinge animais também engaiolados,
nervosos e estressados, com menor resistência. Kate Jones, Professora de
Ecologia e Biodiversidade no University College London lembra o aumento
exponencial do transporte de animais e que a destruição de seus habitats em
troca de paisagens mais ‘humanas’ causa o contato entre animais de uma maneira
anormal, que nunca aconteceu antes, ainda mais quando empilhados em gaiolas em
mercados desse tipo. Interações que se continham no local onde ocorreram agora
se espalham por grandes áreas. A conclusão dos dois cientistas é a seguinte:
primeiro, a culpa não é dos morcegos; segundo, a maneira com que interagimos
com as outras espécies leva à disseminação pandêmica do patógeno; e o
coronavirus talvez seja o primeiro sinal claro, incontestável, de que a
degradação ambiental pode matar os humanos com rapidez, e pode acontecer de
novo. A destruição dos habitats é a causa, de modo que a restauração deles é a
solução. ‘Não é OK transformar uma floresta em agricultura sem entender o
impacto que causa no clima, na concentração de carbono, na deflagração de
doenças e de inundações; você não pode ver apenas a transformação da natureza
sem pensar no que ela causa nos humanos’, diz Jones5.
Para encerrar este artigo com uma nota positiva, a
desaceleração da economia trazida pela pandemia fez regredir rapidamente a
poluição do ar, a concentração de dióxido de carbono, a redução do ruído e uma
melhoria na qualidade de vida nas cidades. É uma demonstração de que a mudança
nos hábitos de consumo, a redução no uso de combustíveis fósseis e uma nova
dinâmica na produção de bens e serviços pode produzir resultados duradouros e
benéficos para a humanidade e, melhor ainda, para o planeta. Não desanimemos.
1 In https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/biovirus2.php,
acesso em 26-3-2020.
3 In https://pt.wikipedia.org/wiki/Pandemia_de_COVID-19,
acesso em 26-3-2020. Jornal ‘O Estado de São Paulo’, 27-3-2020, caderno 1, fls.
A-14.
4 In www.youtube.com/watch?v=TPpoJGYIW54,
acesso em 27-3-2020. A criação de animais selvagens era permitida, foi proibida
por ocasião da epidemia SARS de 2002, também originada em um mercado de animais
vivos ao sul da China, e depois liberada. Além do risco de doenças, , esses
mercados são um incentivo ao tráfico ilegal de espécies, inclusive a fauna
protegida ou ameaçada de extinção. Foi novamente proibida por ocasião da
COVID-19 e entidades de proteção lutam para tornar a proibição permanente. O
vídeo traz o histórico dessa evolução. Não verifiquei a fonte das informações.
O vídeo é mencionado pela descrição da transmissão do vírus e este artigo não
adentra eventual questão política.
5 In https://edition.cnn.com/2020/03/19/health/coronavirus-human-actions-intl/index.htmler .
Acesso em 27-3-2020.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/ambiente-juridico-relacao-entre-meio-ambiente-pandemia-coronavirus, visitado em 28/03/2020, as 23h00.
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