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Análise de "a máquina de fazer espanhóis", de valter hugo mãe, por Yanna Duarte

 





O que senti quando li “A máquina de fazer espanhóis”, do escritor 

português Valter Hugo Mãe




yanna duarte



É impossível ler sem pensar em nossa própria velhice e o que nos aguarda com ela.


O romance de Valter Hugo Mãe se tornou um grande presente que adquiri. Mais atual e autêntico impossível, conta a história de um barbeiro que aos 84 anos, com a morte de sua amada esposa — uma das poucas pessoas a quem nutria um amor genuíno e devoção — vai morar em um lar para idosos. O “Feliz Idade”, que conta com 73 moradores com vistas diferentes. Os que moravam na ala esquerda — sobreviviam com a ajuda de aparelhos e já não respondiam a si mesmos — , passavam seus dias com a lembrança presente da morte personificada na visão de um cemitério, à qual tinham acesso de suas janelas. Os da ala direita — não tão maus quanto os primeiros, pois ainda possuíam algumas vontades, mas não menos perseguidos pela morte — tinham acesso à visão de um jardim.

Por falar na forte presença da morte, tão certa como a ideia de que todo ser vivo respira, a mesma se fazia intensamente presente no lar de peculiares personagens. Entre eles, este que traz a história, o barbeiro Jorge da Silva, mais um Silva entre milhares existentes em Portugal, país que se passa o romance. O sobrenome estava presente em inúmeros portugueses, tão diferentes em espírito, mas ligados por uma mesma cidadania.

Silva se encontra desolado, assustado, descontrolado, com raiva dos que lhe colocaram ali. Daqueles a quem tanto se dedicou. À família que sempre lutou e viveu como razão de sua existência:

“(…) não podemos ficar velhos e vulneráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, caramba, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa de tomar cuidado com as nossas dores.” (pg. 87)


 Ele reclama em maior tempo a saudade de sua esposa. Muito cético e descrente de religião ou divindades, até mesmo do homem, critica a dor de continuar amar alguém à qual não mais vive nesse plano, sugerindo que da mesma forma que essa pessoa partisse, assim deveria desaparecer o amor, a memória latente do que foi essa pessoa. “Este é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder (pg. 36)”. Se indigna com a filha por nem ter esperado superar o luto de sua esposa e ter lhe colocado em um lar, longe de seus pertences, distante da memória de quem um dia fora. Agora, posto como inválido.

Em uma narrativa que prende o leitor, com uma escrita em minúscula e sem pontuações além de ponto e vírgula, Mãe trata a jornada do personagem principal e de sua vida naquele lugar — como a relação com seus companheiros de moradia — , em um fluxo liberado de pensamentos e acontecimentos. Marca reconhecida de Valter, e que também podemos perceber em Saramago, o texto é todo em minúsculas, sem travessões ou parágrafos, de uma forma orgânica. Assim como o pensamento não espera por pontuações, algo que Valter já havia dito em entrevistas, acontece a história e a autorreflexão da condição em que vive os próprios personagens.

Silva é um homem teimoso, transgressor, que não pretende se render às expectativas dos que pensam que sua jornada se encerra por ali. É um homem de memórias, com um passado, presente e um futuro, algo que ainda deseja trilhar. É impossível não sentir empatia por esse personagem, não torcer por ele ou brigar junto com o mesmo quando responde com comportamentos agressivos à sua realidade. Silva perdera a mulher, a vida que partilhava com alguém que amava, perdera os filhos — não literalmente, sinal de que havia acertado com eles — , que já possuíam família e suas vidas para dar conta. Perdeu até os netos adolescentes, que já não se interessavam pela existência de um homem velho. Ler “A máquina de fazer espanhóis” é não deixar de pensar sobre nossa própria velhice, sobre o futuro. É ler a jornada de Silva e perceber que terá chegado a tantos anos de sua vida com cicatrizes, decepções, mas bons momentos, em alguns, até felizes. É pensar em quem você foi e quem agora é. Ler esse livro é também lembrar dos avós que você não mais conversa e que devem ter um mundo de vivências das quais você não mais se dá conta quando passa rápido por eles, e só acena um rápido “oi”. É sentir muito profundamente todas as críticas que Silva faz.

À parte, é também entrar em contato com uma Europa da qual não conheço muito, um Portugal marcado pela ditadura Salazarista e doutrina social da igreja, de santos e religiosidade. Em “A máquina de fazer espanhóis”, é muito presente a crítica ao regime fascista, marcado pelo tradicionalismo, autoritarismo e anticomunismo. O ditador Antonio Oliveira Salazar governou Portugal por 36 anos (com a renúncia dele por motivos de doenças e o governo assumido posteriormente por Marcelo Caetano, que a continuou até 1974), onde em 1933, ministro do militar General Óscar Carmona, escreveu uma nova constituição e a promulgou, tomando o poder nesse mesmo ano e impondo o que chamou de “Estado Novo”, que perduraria por 41 anos. A partir daí, a forte presença do Estado se instaurou, a dívida exterior foi minimizada, pois Salazar aumentou os impostos e cortou investimentos em saúde e em educação, e um sentimento nacionalista abraçou o país. O risco de tais governos como estes dito fascistas — impossível de não fazer uma ponte e ligar ao candidato de extrema direita à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro –, é a censura máxima que eles impõem ao seu povo, com a repressão à imprensa e aos meios de comunicação, proibição de greves, ativismos e opiniões contrárias a desses governos sendo reprimidas. Também eram presentes a polícia política e os campos de deportação de adversários do regime.

Ao entrar no passado de Silva, não só conhecemos a solidão e a dor que estar envelhecendo causa, mas também os arrependimentos e os traumas de ter sucumbido ao regime, de ter, em alguma forma, compactuado com o mesmo e reduzir-se a nada, talvez, a um traidor de seu próprio país e de sua identidade. É por meio do que ele vai vivendo no lar, e nas conversas com seus amigos — personagens simpáticos e interessantes criados por Valter — que Silva se pega repensando o que ele foi, e um sentimento de revolta começa a florir. Talvez, o sentimento de que nunca mais iria deixar o reduzirem a nada, algo que o fascismo de Salazar fez.


Me tocou muito o modo que Valter Hugo Mãe escreve, a realidade desse mundo criado por ele. Talvez por escrever sobre o que conhece, palavras do próprio no Roda Viva. Esse livro é como viajar à minha própria velhice, do que serei. É difícil não me questionar ao lê-lo. O que Mãe criou é uma grande reflexão do ato de envelhecer, é próximo ao que posso viver, tão universal, uma história que poderia ser a minha. Sobre mim. Uma história que conta sobre o que chegarei a ser um dia, sobre a velhice, da qual torço para que todos a encontremos. A realidade de quem lê se mistura com a ficção do livro, e a história de Silva, em alguns momentos, é como se fosse ficção para a sua realidade, quando começa a ter sonhos estranhos de que pássaros o querem matá-lo e reduzir sua metafísica, sua profundidade. Em certo momento da leitura, Silva acusa de sentir medo, desespero, porque ele sente que o seu fim está próximo e não quer de maneira alguma ir. Após tanta resistência aos amigos e ao lar, encontrara o amor, descobrira uma nova parte de si que estava escondida dentro de seu ser. Encontrara a amizade.

Este romance é político, não se engane disso. Viver é político. Mas em algumas situações, isso se torna mais presente. Eu, com pouco conhecimento a respeito de literatura, tive uma experiência singular com este livro. Em certos momentos me emocionou, me causou estranheza com seu repertório, um certo desentendimento, lia a mesma página umas duas vezes, e sempre com atenção pra não perder nada. Mas o termino com a vontade de o ler de novo, em algum momento próximo, pois já fui mudada por ele. E quando eu o ler de novo, nem eu e nem ele seremos mais os mesmos.

Em uma reflexão lúcida e com certa urgência, Silva explica a importância do outro “os outros, Américo, justificam suficientemente a vida, e eu nunca diria”.



... o resto eu deixo com vocês, boa [futura] leitura.


Texto disponível em: https://medium.com/@yannaarrais/o-que-senti-quando-li-a-m%C3%A1quina-de-fazer-espanh%C3%B3is-do-escritor-portugu%C3%AAs-valter-hugo-m%C3%A3e-401d96bf321f, visitado em 15/09/2021, às 23h52min.


Comentários

  1. Esta é a segunda obra de Valter Hugo Mãe, autor português, que eu leio.
    Apaixonante.
    Recomendo, porque se trata de um autor que escreve de uma forma que nos toca profundamente, levando-nos a pensar sobre nossas vidas e fazendo-nos descobrir em nós a nossa essência.
    Caetano Veloso foi convidado a prefaciar esta obra, enriquecendo-a muito mais.
    Você é convidado a ler comigo.
    Vamos?

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  2. Muito lindo, reflexivo e nos chama a atenção para viver intensamente o agora com os olhos voltados para as belezas do mundo. A velhice chega para todos que saibamos usufruir de cada segundo. Viver ainda vale muito a pena, apesar das vicissitudes política, econômica, cultural e social. Grata

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