O que senti quando li “A máquina de fazer espanhóis”, do escritor
português Valter Hugo Mãe
Por falar na forte presença da morte, tão certa como a ideia de que todo ser vivo respira, a mesma se fazia intensamente presente no lar de peculiares personagens. Entre eles, este que traz a história, o barbeiro Jorge da Silva, mais um Silva entre milhares existentes em Portugal, país que se passa o romance. O sobrenome estava presente em inúmeros portugueses, tão diferentes em espírito, mas ligados por uma mesma cidadania.
Silva se encontra desolado, assustado, descontrolado, com raiva dos que lhe colocaram ali. Daqueles a quem tanto se dedicou. À família que sempre lutou e viveu como razão de sua existência:
“(…) não podemos ficar velhos e vulneráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, caramba, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa de tomar cuidado com as nossas dores.” (pg. 87)
Ele reclama em maior tempo a saudade de sua esposa. Muito cético e descrente de religião ou divindades, até mesmo do homem, critica a dor de continuar amar alguém à qual não mais vive nesse plano, sugerindo que da mesma forma que essa pessoa partisse, assim deveria desaparecer o amor, a memória latente do que foi essa pessoa. “Este é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder (pg. 36)”. Se indigna com a filha por nem ter esperado superar o luto de sua esposa e ter lhe colocado em um lar, longe de seus pertences, distante da memória de quem um dia fora. Agora, posto como inválido.
Em uma narrativa que prende o leitor, com uma escrita em minúscula e sem pontuações além de ponto e vírgula, Mãe trata a jornada do personagem principal e de sua vida naquele lugar — como a relação com seus companheiros de moradia — , em um fluxo liberado de pensamentos e acontecimentos. Marca reconhecida de Valter, e que também podemos perceber em Saramago, o texto é todo em minúsculas, sem travessões ou parágrafos, de uma forma orgânica. Assim como o pensamento não espera por pontuações, algo que Valter já havia dito em entrevistas, acontece a história e a autorreflexão da condição em que vive os próprios personagens.
Silva é um homem teimoso, transgressor, que não pretende se render às expectativas dos que pensam que sua jornada se encerra por ali. É um homem de memórias, com um passado, presente e um futuro, algo que ainda deseja trilhar. É impossível não sentir empatia por esse personagem, não torcer por ele ou brigar junto com o mesmo quando responde com comportamentos agressivos à sua realidade. Silva perdera a mulher, a vida que partilhava com alguém que amava, perdera os filhos — não literalmente, sinal de que havia acertado com eles — , que já possuíam família e suas vidas para dar conta. Perdeu até os netos adolescentes, que já não se interessavam pela existência de um homem velho. Ler “A máquina de fazer espanhóis” é não deixar de pensar sobre nossa própria velhice, sobre o futuro. É ler a jornada de Silva e perceber que terá chegado a tantos anos de sua vida com cicatrizes, decepções, mas bons momentos, em alguns, até felizes. É pensar em quem você foi e quem agora é. Ler esse livro é também lembrar dos avós que você não mais conversa e que devem ter um mundo de vivências das quais você não mais se dá conta quando passa rápido por eles, e só acena um rápido “oi”. É sentir muito profundamente todas as críticas que Silva faz.
À parte, é também entrar em contato com uma Europa da qual não conheço muito, um Portugal marcado pela ditadura Salazarista e doutrina social da igreja, de santos e religiosidade. Em “A máquina de fazer espanhóis”, é muito presente a crítica ao regime fascista, marcado pelo tradicionalismo, autoritarismo e anticomunismo. O ditador Antonio Oliveira Salazar governou Portugal por 36 anos (com a renúncia dele por motivos de doenças e o governo assumido posteriormente por Marcelo Caetano, que a continuou até 1974), onde em 1933, ministro do militar General Óscar Carmona, escreveu uma nova constituição e a promulgou, tomando o poder nesse mesmo ano e impondo o que chamou de “Estado Novo”, que perduraria por 41 anos. A partir daí, a forte presença do Estado se instaurou, a dívida exterior foi minimizada, pois Salazar aumentou os impostos e cortou investimentos em saúde e em educação, e um sentimento nacionalista abraçou o país. O risco de tais governos como estes dito fascistas — impossível de não fazer uma ponte e ligar ao candidato de extrema direita à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro –, é a censura máxima que eles impõem ao seu povo, com a repressão à imprensa e aos meios de comunicação, proibição de greves, ativismos e opiniões contrárias a desses governos sendo reprimidas. Também eram presentes a polícia política e os campos de deportação de adversários do regime.
Ao entrar no passado de Silva, não só conhecemos a solidão e a dor que estar envelhecendo causa, mas também os arrependimentos e os traumas de ter sucumbido ao regime, de ter, em alguma forma, compactuado com o mesmo e reduzir-se a nada, talvez, a um traidor de seu próprio país e de sua identidade. É por meio do que ele vai vivendo no lar, e nas conversas com seus amigos — personagens simpáticos e interessantes criados por Valter — que Silva se pega repensando o que ele foi, e um sentimento de revolta começa a florir. Talvez, o sentimento de que nunca mais iria deixar o reduzirem a nada, algo que o fascismo de Salazar fez.
Este romance é político, não se engane disso. Viver é político. Mas em algumas situações, isso se torna mais presente. Eu, com pouco conhecimento a respeito de literatura, tive uma experiência singular com este livro. Em certos momentos me emocionou, me causou estranheza com seu repertório, um certo desentendimento, lia a mesma página umas duas vezes, e sempre com atenção pra não perder nada. Mas o termino com a vontade de o ler de novo, em algum momento próximo, pois já fui mudada por ele. E quando eu o ler de novo, nem eu e nem ele seremos mais os mesmos.
Em uma reflexão lúcida e com certa urgência, Silva explica a importância do outro “os outros, Américo, justificam suficientemente a vida, e eu nunca diria”.
... o resto eu deixo com vocês, boa [futura] leitura.
Texto disponível em: https://medium.com/@yannaarrais/o-que-senti-quando-li-a-m%C3%A1quina-de-fazer-espanh%C3%B3is-do-escritor-portugu%C3%AAs-valter-hugo-m%C3%A3e-401d96bf321f, visitado em 15/09/2021, às 23h52min.
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Esta é a segunda obra de Valter Hugo Mãe, autor português, que eu leio.
ResponderExcluirApaixonante.
Recomendo, porque se trata de um autor que escreve de uma forma que nos toca profundamente, levando-nos a pensar sobre nossas vidas e fazendo-nos descobrir em nós a nossa essência.
Caetano Veloso foi convidado a prefaciar esta obra, enriquecendo-a muito mais.
Você é convidado a ler comigo.
Vamos?
Muito lindo, reflexivo e nos chama a atenção para viver intensamente o agora com os olhos voltados para as belezas do mundo. A velhice chega para todos que saibamos usufruir de cada segundo. Viver ainda vale muito a pena, apesar das vicissitudes política, econômica, cultural e social. Grata
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